Marcos

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Quando tinha quatro anos minha família veio de Salvador para o Rio. Minha família é um misto de São Luís do Maranhão, por parte de minha mãe; e, por parte de meu pai, Salvador, Bahia. Minha avó era faxineira em um colégio em Botafogo e tínhamos uma casinha no Engenhão, daí ela arrumou um terreninho aqui na Maré, na Nova Holanda, e mudamos para cá. Meu pai nunca veio aqui na comunidade e minha mãe era passista em escola de samba, então a cabeça dela ficava no mundo entre o Serrano e a Mangueira. Minha avó foi a minha mãe e o meu pai, foi o homem da casa. Fui criado pela minha avó e tenho muito orgulho disso.

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Era 1968 quando chegamos na Nova Holanda e nessa época não tinha um terço do que tem hoje. Era tudo barraco, palafita, água, barro, não tinha mercado, não tinha loja, não tinha saneamento básico, não tinha nada. Quando você saía tinha que usar uma sacola no pé até chegar na Avenida Brasil porque era lama pura. Era muita dificuldade que nós passávamos, mas éramos felizes. Você dormia no meio da rua, na calçada, as pessoas se reuniam e faziam festas, as crianças brincavam a noite toda na rua.

Então eu digo para você: a Nova Holanda teve seus momentos de dificuldade como toda comunidade tem, mas o povo nesses anos, nós éramos unidos. Se na sua casa não tinha luz e na minha tinha, eu puxava um fio em sua casa para você poder ter aceso a luz também, se na sua casa não tinha água encanada e na minha tinha, a gente colocava um cano e vamos que vamos, se você não tinha comida, eu te dava um prato da minha. Um brigava pelo outro e assim cresceu a Nova Holanda. Hoje em dia não tem mais isso, se alguém vai te fazer um favor quer te cobrar de alguma maneira.

Nas décadas dos 70 e 80 a gente começou a modernizar, entraram redes de mercado e de farmácia, chegou luz e água encanada. Mas com a modernização também veio as dificuldades: a população aumentou demais, tem mais carros na rua, menos liberdade de ir e vir, mais tiroteio, mais violência. Eu nunca quis me envolver com nada disso, nunca quis fumar maconha, nunca quis cheirar cocaína, nunca quis roubar ninguém, porque eu sabia que ia fazer alguém sofrer com as consequências, não iam recair nos meus ombros mas em cima das aquelas pessoas que tinham uma confiança em mim, no meu caso minha avó. Eu não podia jamais envergonhar ela, decepcionar ela, então eu sempre fui essa pessoa que foi trabalhar. Eu trabalhei em vários pontos, entregando mesas e outros trabalhos, agora fazendo tatuagem, porque eu sabia que tinha que ajudar a minha avó em casa. E graças a Deus, ela foi embora mas ela não teve que falar “meu neto está preso, meu neto está na esquina armado”. A única arma que eu carrego é minha pistola de tatuagem na minha mochila.

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Depois na minha vida eu achei que eu não podia ser só mais um baiano aqui no Rio, eu disse: “fui para o Rio e me tornei um vagabundo”. Eu tinha que mostrar o que eu era, para que eu estava aqui, então durante esse período eu cursei a faculdade de direito. Fiz tatuagens aqui, tatuagens ali, trabalhando aqui, trabalhando ali para pagar. Todo mundo tinha problema porque eu era pobre, preto e favelado e falava que por isso eu não podia ser advogado, falava: “um preto, pobre, favelado vai fazer faculdade para que?” Então o desafio me incentivou mais, eu tinha que mostrar para mais pessoas que eu tinha as condições para me formar.

E eu fiz faculdade para poder agradar o meu pai que é muito preconceituoso, que tinha em vista que alguém que era preto e favelado era marginal. Meu pai é advogado, tenho uma irmã que também é advogada, tenho um irmão que é professor de matemática, e na minha vida meu pai sempre falou: “Marcos, você mora na favela”. É por isso que eu fiz questão de igualar aos meus irmãos, eu queria me igualar, eu queria que meu pai tivesse orgulho de mim. É por isso que eu batalhei tanto, fiz mil coisas nessa vida, porque eu tinha que mostrar para ele que um preto, pobre e favelado tem sim o direito de sonhar e conquistar os seus objetivos.

Meu pai separou da minha mãe, me abandonou quando eu era jovem. Nesse período de abandono eu procurei ele e se fechou meu mundo, as pessoas falaram “pô, você não tem pai não” e era doloroso. Quando chegava dia dos pais, na escola eu era obrigado a sentar e fazer um desenho para ele, mas onde ele estava? Meu grande trauma foi isso, eu não ter tido pai para poder falar para ele: “eu te amo”. Mas ao mesmo tempo eu descobri que meu pai era o que era, quando eu o vi, vi que ele só pensava no status dele. Então quando eu me formei eu cheguei para ele e mostrei meu diploma e falei: “toma pai, está satisfeito?” Ele ficou me olhando, sem graça, e daí ele falou: “é, meu filho, você chegou lá”. E eu falei: “como está satisfeito, eu estou indo agora daqui para frente conseguindo a minha vida como eu sempre quis”.

Eu nunca quis participar efetivamente nessa vida dele como advogado porque tem muita hipocrisia. Um advogado, um criminalista, ele não tem o direito de ter a vida própria, tem sempre que olhar para todos os lados, e eu gosto de andar despreocupado. Eu escolhi ser uma coisa e estudei pra ser outra coisa, então hoje eu sou advogado formado, sou tatuador e de noite faço segurança numa escola de samba, Acadêmicos do Salgueiro. Tem semanas na escola onde temos evento na sexta, no sábado, no domingo e na segunda à noite, eu passo a noite acordado e de manhã eu tenho que fazer minhas tatuagens. É cansativo mas está tudo bem, essa é uma vida, uma vida de trabalhar e achar algo melhor.

Todo dia eu acordo de manhã e eu falo: “Pai, muito obrigado por mais um dia porque eu posso, eu quero, eu consigo”. Quem crê em si nunca tem dificuldade que não possa superar. Se você falar, “chega, eu não quero mais”, você fica para trás. Se você perseverar, se você ver as dificuldades mas continuar na luta, tem uma maneira correta e digna para você alcançar seus objetivos, o seu querer é o seu poder. Segue em frente, nunca vira as costas para nada nem para ninguém, e lembra-se: abaixo de Deus, quem manda é você. É por isso que todo dia eu acordo e falo isso para mim: “Meu Pai, muito obrigado, porque hoje é um dia de vitória”.

No futuro eu espero aquilo que todo mundo que mora aqui espera: o melhor para os meus filhos. Eu tenho três filhos: um menino que trabalha em Bonsucesso, uma menina que faz faculdade e agora eu tenho um filho que tem dois anos. Eu quero arrumar o melhor para o meu filho, então hoje eu trabalho para isso. Trabalho de dia e trabalho de noite para que amanhã meu filho consiga ter uma vida melhor, para que ele não precise acordar de madrugada para trabalhar, para que ele não tenha que suar como eu suei e passar o que eu passei. E o que eu espero na vida e que um dia ele possa sentar e dizer: “muito obrigado meu pai, porque consegui chegar onde cheguei”.

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