A minha história é o seguinte: eu nasci no dia 9 de outubro de 1930 num lugarzinho chamado Santo Antônio dos Pretos, município de Codó, estado de Maranhão. Lá onde eu nasci não tem água encanada, não tem luz eléctrica, não tem escola, não tem asfalto, até hoje não tem nada disso não. As pessoas lá de manhã saiam pra dentro do mato quebrando coco, quebravam cinco, seis quilos de coco, chegavam de noite, compravam meio quilo de arroz, e ali iam comer. No dia que não quebravam coco não tinham o que comer. Meu pai nunca quebrou coco para vender não, ele fazia a rocinha dele lá, botava o arroz nos dois, três animais que tinha, ia 60 quilômetros para Codó, lá chegava e vendia aquilo, aí ele comprava uma caixa de sabão, uma saca de sal, uma moedinha de roupa e ia para casa para fazer outra roça para colher no outro ano. Era essa o que a gente tinha lá.
Minha mãe teve 12 filhos, mas alguns deles morreram. Não tinha recurso, não tinha nada, ninguém sabia que uma era diabética. Dos 12 que ela teve ficaram cinco, e eu era o mais novo. Quando eu tinha oito anos meu pai me deixou passar o Natal na casa do meu futuro cunhado. Pela primeira vez eu vi um caminhão, uma casa de telha, de uma casa caída, coberta de barro de coco, para ver essa casa bonita, caia água, caramba! A cidade não era grande mas para mim era uma coisa.
Em 1939 ela se casou com ele, e ela pediu meu pai para me deixar com o cunhado lá, que ela estava sozinha lá com a família dele. Em 1941, meu cunhado mudou com ela pra o interior. Eu não queria ir, então ele arranjou uma aprendizagem com um alfaiate, falou: “quer um garoto lá para ficar na sua casa, aprende a profissão contigo”. Morei na casa desse senhor desde 1941 a 1948. Entrei na escola mas não tirei diploma, porque no dia de fim do ano a escola fez encerramento e tudo, e eu não fiz o desfile porque eu não tinha sapatos. Fui lá na praça, fiquei lá descalçado, meus colegas desfilando e eu lá do lado. Meu pai morava em outro lugar e não tinha o dinheiro, e quando eu morava na casa desse rapaz ele não ia comprar pra mim, ou seja eu não fui criado pra ele, ele não ia gastar dinheiro desse jeito. Então não tirei diploma.
Em janeiro de 1948 eu falei pra ele, eu vou embora, porque já tinha dois irmãos que moravam na capital de São Luís. Achei uma cidade grande, que lá seria tudo diferente. Eu tinha escrito uma carta pro meu irmão que eu ia pra lá, naquele tempo era trem de fumaça, e quando cheguei lá de noite não tinha o meu irmão esperando, não tinha ninguém. Aí passou alguém que era do Codó mas já era acostumado, me olhou e falou que tinha um quarto pra alugar ali. Quando eu fui passar na quarta da estação fiquei com medo da guarda, que diziam que na cidade quem não tem documento vai preso [risas]. O guarda nem me olhou, quando passei pela guarda eu corri. Fui lá na casa dele, fiquei no quarto dele, e o dia seguinte ele procurou o endereço do meu irmão e aí me entregou. Morei em São Luís de 1948 a 1954, eu trabalhava de alfaiate e matriculei a noite, fiz exame de admissão e entrei para estudar. Foi lá onde eu tirei a diploma de primaria.
Em novembro de 1954 eu fui no interior na casa do meu pai pra falar pra ele que eu queria ir pro Rio de Janeiro. Ele falou: “você vai, vai, só que não vai me ver mais”.
“Por que, pai?”
“Porque vou morrer.”
“Não, que isso, eu vou e volto, não tem problema. Não, então não vou.”
“Não senhor, agora você vai, a vida é sua.”
Aí ficava, vou ou não vou, vou ou não vou. As pessoas me disseram, “Rio de Janeiro é bom, você vai melhorar, vai poder trabalhar”. E eu ficava naquele negócio, vou ou não vou. Daí eu decidi: Eu vou, se não der certo eu volto. Aí fui embora, e no dia 29 de novembro de 1954, eu cheguei aqui no Rio de Janeiro.
Tem aquela música [cantando]:
Peguei um Ita no norte
Pra vim pro Rio morar
Adeus meu pai, minhã mãe
Adeus Belém do Pará
Eu não vim do Belém do Para não, mas vim do Maranhão, na costa de Belém, no calor danado de novembro. Meu irmão me trouxe pra morar aqui na Maré, numa barraquinha lá na Baixa do Sapateiro. Ele me mostrou a cidade, como é que era, e na segunda feira ele foi e eu estava lá sozinho. Peguei o bonde, cheguei ali na Praça Mauá, e tinha anuncio de alguém que estava precisando de alfaiate. Naquela época eu almoçava num restaurante chinês, era o restaurante mais barato que tinha, e não jantava, pegava um cafezinho e segurava o dinheiro. Eu estava pensando em comprar um rádio, não tinha nada, mas com o dinheiro que eu tinha eu sai e comprei essa máquina que está aqui. Foi de noite quando meu irmão chegou:
“Uê, comprou uma máquina?!”
“Comprei.”
“Não falei pra gente comprar um rádio?”
“Com essa máquina eu vou comprar dez rádios, o senhor comprar um rádio, a gente vai gastar o dinheiro.”
E graças a Deus essa máquina aí foi o princípio do meu trabalho.
Aí essa minha esposa, quando cheguei aqui ela não morava aqui não, ela morava na Bahia, mas tinha uma irmã dela que era casada com um conterrâneo meu. E ele sempre falava: “quando tua irmã chegar vamos casar com ela”. Eu sempre falava: “nada disso meu irmão, essa irmã não dá confiança não, eu não gosto de preta” [risas]. Ela chegou aqui em fevereiro de 1955, fui na casa do meu amigo, vi ela, a cara negra, e pensei, isso não vai dar não [risas]. Aí eu fui embora, não pensei mais nela, mas ela tinha um irmão que morava em Curitiba e aqui não tinha correio. Então ela me pediu pra escrever com o meu endereço, que eu estava morando num quarto na Praça da Bandeira, perto do meu trabalho, e quando a carta chegava eu trazia a carta para ela. Ficava naquele negócio até que um dia eu cheguei, deixei a carta para ela as 10:30 e quando ia embora para casa um vizinho falou: “fica aí, almoça com a gente”. Aí eu fiquei, almoçamos, e quando ia sair, ela falou: “eu vou lá em Botafogo, visitar uma conterrânea lá”. “Ah, eu vou também, que eu vou soltar la na Praça da Bandeira”. E daí nós fomos sair, eu, ela e a mãe dela, que falou do nada: “que casal bonito, hein?” [risas]. A gente entrava no ônibus, a mãe dela sentava na frente e ela no banco, e a mãe dela falou: “Bom, a gente vai casar. Vamos casar? É a mamãe que sabe”.
A gente ficou nessa brincadeira em 1958, 1959 e no dia 4 de junho de 1960 nós casamos, são 55 anos de casamento [risas]. Eu não tinha barraco, e ela tinha um barraquinho de madeira. Perguntei para ela:
“Você vai casar e vai morar num quarto?”
“Não, eu não vou largar a minha mãe.”
“Então como é que a gente vai fazer, morar aqui, então eu posso morar aqui, melhorar o barraco. Dá pra fazer?”
“Dá sim.”
A barraquinha de madeira joguei no chão, fiz um casarão lá, desse casarão eu vendi e comprei um barraco aqui, no Morro do Timbau. Aqui era ruim também mas comprei o barraco, fiz essa casa,e hoje graças a Deus é tudo meu. Deu uma oportunidade pra abrir uma oficina lá no centro da cidade, e trabalhei lá de 1962 até 1974. Tinha uma boa clientela mas não queria ficar pagando aluguel, pagando imposto, pagando tantas coisas. Depois que eu fiz a casa eu abri uma sala aqui, fechei a oficina lá e vim pra acá e estou aqui até hoje.
Foi em 1979 que veio o Projeto Rio, depois o ministro conseguiu fazer com que o governo do estado desse título de propriedade pra gente, então com a minha propriedade pago IPTU. Daí eu larguei de ser favelado para ser dono daquele que mais almejava. Quando eu cheguei aqui não tinha nada, todo mundo morava mas ninguém tinha documento de nada. Graças a Deus a gente lutou, lutou, lutou e conseguiu assegurar nossa estabilidade. Está aqui, está pago IPTU, imposto de propriedade. Agora é meu e ninguém tasca!
Essa é a minha vida, é uma vida sempre dando tudo, sempre trabalhando. Nunca mais vi meu pai depois que eu vi ele no interior, quando me casei em 1960 ele faleceu. Realmente estava se despedindo quando me disse: “você vai, eu não vou te ver, mas você vai”. Minha mãe já veio aqui, mas deu um azar quando chegou. No dia quando eu marquei a passagem pra ela voltar, ela foi atropelada na Avenida Brasil, quebrou a perna em dois lugares. Foi pro hospital, ficou seis meses recuperando, mas voltou, morreu depois de dez anos. Eu mais a minha esposa moramos aqui embaixo, e em cima moram minha filha e um casal que vai pagar aluguel. Tenho três netos, dois netos homem e uma neta mulher.
Eu, o futuro? O meu futuro é esperar o homem lá em cima me chamar e eu ir pro Caju. Fiz 85 anos em outubro. O que é que eu vou fazer mais?
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